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17 de novembro de 2010

Uma Lenda Mineira

TRANSCRITO DO BLOG http://joseluizloureiro.blogspot.com/

Na estrada que vae da estação de Piranguinho á villa de S. Caetano a Vargen Grande, comarca de Itajubá, a uns quatro kilometros daquella estação, existe um lagedo, a proposito do qual ocorrem duas lendas entre os habitantes daquella zona sul-mineira.

A localidade apresenta pontos de vista admiráveis, principalmente nas claras manhãs, cheias de luz, quando o sol banha os prados e os montes, ou ah cair de uma tarde limpida e serena, quando o viandante vae em demanda de pouso na villa.

No lugar a que se refere a lenda, um pequeno veio de agua corre pela lage, marulhando docemente, crystallina e fresca, descendo pr uma gruta. Do lado de cima desenvolve-se o terreno em suaves ondulações, até terminar, muito ao longe, em uma quasi escarpa, que se perde no horizonte, numa confusão de luz, sob o azul translúcido do céo. A paisagem é de bellissimo effeito e prende o olhar do viajorcomtemplativo.

Próximo á Lage, do lado superior da estrada, vê-se uma choça abandonada e em ruinas. Nesse mesmo lugar existiu outra, mais bem construida, na qual, pelo correr do anno de 1830, residiu um sacerdote, que ali mesmo dizia missa, sendo ahi celebrado o primeiro sacrificio, até que, em 1849, foi creado o districto de S. Caetano.

Os primeiros padres que ali celebraram o officio divino foram os rvds. João Baptista e Athanasio José Rodrigues, este ultimo de nacionalidade portugueza.

Refere uma das lendas que por aquelle lugar andaram Jesus e S. Pedro, deixando na pedra os signaes de seus pés. Sobre o lageado ha, de facto, dois sulcos em sentido inverso. Os moradores da localidade consideram abençoado o terreno da Lage, cuja fertilidade attribuem a essa lenda, que é antiquissima, pois já era relatada pelos avós da velha geração de S. Caetano.

A outra lenda, menos divina, é mais romantica. Em 1740, mais ou menos, habitava proximo á Lage um velho casal com um filho rapaz.

Os paes, pessoas rusticas e pobres, gosavam de grande estima em toda a redondeza. Ninguem que por ali passasse, peão ou cavalleiro, deixava de tira respeitosamente o chapéo, dizendo: Deus lhes dê bons dias.

Não poucas vezes a humilde cabana servia de pouso aos forasteiros, com os quaes o pobre casal repartia seu parco alimento.

O filho, entretanto, não herdára as boas qualidades paternas. Preguiçoso e vadio, não auxiliava os paes no mourejar diario, exigindo ainda, que estes, além de o sustentarem, alimentassem seus vicios. O rapaz era musculoso e forte. Typo perfeito de mameluco, affeito aos climas rudes, ás intemperies, mas indolente e máo. Apesar de contar cêrca de trinta annos de edade, nunca se ocupára em trabalho algum e apenas sabia manejar com destreza o trabuco, sendo a caça sua unica occupação.

Bons por naturea, os velhos viviam, não obstante, em lucta com o filho, a fim de que este se dedicasse ao trabalho e os auxiliasse na sua velhice. Isso desgostava o rapaz, que respondia com aspereza aos conselhos paternos. Um dia, depois de uma dessas costumadas scenas, o máo filho jurou vingar-se de seu pae.

Ao cahir da noite, lançou mão do fuzil e encaminhou-se para Lage, por onde devia passar o pae, de regresso de seu tabalho diario.

O dia fôra abafadiço, de sol causticante, prenunciando tempestade. Nuvens negras iam-se, pouco a pouco, acumulando no horizonte, fazendo a succeder rapidamente ao dia quasi sem transição. Dahi a instantes, o céo tornou-se negro e tempestuoso. O vento sibilava por entre as franças dos arvoredos e, de espaço a espaço, um relampago clareava a floresta, para deixal-a, após, em escuridão mais profunda.

O tempo favorecia aos intentos sinistros do mameluco.

Os relampagos foram se tornando mais vivos zig-zagueando, sanguineos, no horizonte negro. Ao longe ribombavam os trovões. Surdos ruidos enchiam a vastidão da matta, num horrido concerto com a trovoada, que se approximava, augmentando: rumores longinquos de feras que bramiam, o sibilar da ventania, fazendo curvarem os galhos das arvores, que se contorciam, como harpias, em convulsóes titanicas, num gemido soluçante de almas penadas. Uma coruja gargalhava sinistramente. Dahi a momentos começaram a cahir grossas gotas de agua, tamborilando sobre as folhas das arvores copadas, que se curvavam, arqejantes, ao sopro do tufão.

Subito, o mameluco, com o ouvido affeito aos mais leves ruidos, sentiu passos, a aproximação de alguem, não obstante o tumultuar tempestuoso de vozes da natureza. Ergueu a arma e esperou. Era, de facto, seu pae que regressava.

Ao sentir que a tempestade se approximava, o velho apressára o passo, pensando com cuidado na mulher e no filho, que deixára pela manhã. No momento em que o ancião dobrava a curva do caminho e já se approximava da Lage, o perverso filho levou a arma ao ombro e fez pontaria, á luz sanguinea (errata - sanguinolenta) de um relampago mais vivo e mais rubro. Ia disparar a arma, quando se sentiu preso ao lagedo. Quiz mover os pés e não o pôde fazer.

A coruja gargalhou de novo e, logo após, ouviu-se o forte ribombar do trovão. O velho pae descobriu-se e persignou-se.

O mameluco, com furia que animava sua alma mais negra do que aquella noite tempestuosa, tentou ainda, num esforço supremo, sahir do local em que estava. Baldado esforço. Ao sentir-se preso, apossou-se delle horrivel pavor. O suor escorria-lhe, gelido, pelas faces, molhando-o mais que as gotas de agua da chuva. Quiz gritar por socorro, mas a voz morreu-lhe estrangulada na garganta. Tentou dirigir um appelo a Deus, mas nã sabia rezar. Então, sua consciencia despertou, illuminada subitamente, no instante em que um relampago apunhalava as trevas daquella noite horrenda, ensanguentando-a, e elle comprehendeu que ia praticar um crime terrivel, para o qual não haveria perdão possivel.

Curvou os joelhos, vencido, esmagado, mas não pôde ajoelhar-se, pois continuava a ter os pés presos á lage. Ergueu as mão juntas, numa supplica angustiosa, implorando mudamente a misericordia divina.

Minutos epois, a tormenta desabou com extraordinaria violencia, varendo a planicie, descendo pelas encostas, uivando, bramindo, sibilnte, num tremendo concerto de sons e ruidos estranhos e terrificos.

E elle ali ficou, preso á pedra, como um naufrago, no oceano revolto de sua consciencia que despertava, ouvindo o rugir em furia do temporal que parecia gritar-lhe : Parricida!

Em casa, a velha mãe orava, em frente a uma tosca imagem de Christo crucificado, rogando a Deus pelo marido e pelo filho. Quando aquelle chegou sosinho, escorrendo em agua, a mulher indagou pelo filho. O velho esperava encontral-o em casa.

Que seria feito delle naquella noite tormentosa, Deus do céo? Sentiram o coração confranger-se. A pobre mãe, com os plhos cheios de lagrimas, ajoelhou-se de novo em frente á imagem de Christo e continuou a rezar, agora não mais pelo marido e pelo filho, mas por este só, que Deus o tivesse em sua santa guarda.

A tempestade continuava a bramir furiosamente. A ventania abalava a humilde choça, que só por um milagre não era arrastada pela tormenta. A agua invadia a cabana pelo tecto e pelas paredes esburacadas. A luz da candeia de azeite apagára-se com um golpe de vento, deixando o interior quasi nas trevas, apenas fracamente illuminado por algumas brasas no fogão.

Não restava ao velho, sequer, o recurso de sair á procura do filho.

Quando o temporal diminuiu de violencia, o velho entreabriu a porta, sondando o horizonte. A agua descia pela encosta, inundando a baixada e o estreito carreiro, transformados num rio caudaloso. A sahida era impossivel.

Após uma noite de terrivel anciedade, passada em claro, o ancião sahiu muito cedo á procura do rapaz. A' tormenta succedêra uma linda madrugada. Como as arvores, o céo parecia lavado pela chuva. Vinha rompendo aurora, ainda vagamente, envolvendo a immensidade das coisas numa meia luz, de roseos tons dubios.

As aguas pluviaes escoaram-se depois da tempestade, deixando caminho cheio de lama. Aqui e ali, troncos arrancados, galhos partidos e ramos quebrados atravessavam o carreiro, dificultando a passagem.

Ao approximar-se da Lage, o dia via rompendo numa pompa gloriosa de luz, clara e vibrante, enchendo as mattas, os morros, as quebradas e o azul limpido do céo dessa immensa harmonia de côres vivas e alegres. As copas das grandes arvoresdestacavam o verde-glauco sobre o fundo azul do firmamento. Ao longe, montanhas azuladas perdiam-se de vista sumindo-se no horizonte. As aves trinavam alacremente, saudando o despontar do dia.

O mameluco, ao avistar o pae, chamou-o em voz timida, que destoava de seu habitual tom rude.

Sem comprehender bem por que conjuncto de circumstancias se achava ali o rapaz, o velho approximou-se delle, alegre por havel-o encontrado e ia indagar-lhe do occorido, quando o filho, de mãos postas, implorou:

- Pae, perdoa-me. Eu quiz matar-te. Juro que serei de ora avante, um filho bom e humilde. Perdoa, pae, e da-ma tua bençãm.

Attonito, ainda sem comprehender bem as palavras de arrependimento do filho, o velho, sereno e simples, nobre como um pae, grande como um Deus, estendeu a mão e disse:

- Eu te perdôo, filho, e Deus te abençoes.

Deu-se, então, um facto extranho, miraculoso: o rapaz, que tentára pôr os joelhos em terra á approximação do pae, conseguiu, por fim, ajoelhar-se quando este lhe concedeu o perdão impetrado, e sentiu que os pés estavam livres.

Livres! Deus concedêra aquelle milagre ao influxo do amor paterno e abençoára o filho arrependido pela intercessão do velho pae, com na divina parabola do filho prodigo: os arrependidos são os que se salvam.

Ajoelharam-se ambos e, descobertos, deante daquella natureza bella e grandiosa, sob aquelle céo tão azul, na transparente limpidez de sua immensidade, agradecera a Deus a sua infinita misericordia, mais bella do que a natureza que os cercava, maior do que aquelle céo-hontem negro e tempestuoso e hoje tão calmo, tão sereno, -imagem fiel da alma do filho arrependido.

Tempos depois, passando por aquelle caminho um sacerdote, o velho casal, no cumprimento de uma promessa feita, narrou-lhe o facto e implorou-lhe a mercê de benzer o lagedo, sobre o qual ficaram gravados para sempre os signaes dos pés do filho, que se regenerára completamente e era agora o amparo de seus paes.

O sacerdote accedeu e, então, enquanto este procedia á cerimonia religiosa, paes e filho ajoelharam-se e oraram, agradecendo ainda uma vez a Deus a sua infinita bondade, a sua incommensuravelmisericordia.

1904.

Heitor Guimarães, Volateis (CONTOS E PHANTASIAS), Typ. do Correio de Minas - Juiz de Fóra, 1905.

Agradeço ao nobre amigo Guido por proporcionar à todos esta histórica e folclórica leitura de uma lenda genuinamente da região dos atuais Municípios de Brazópolis e Piranguinho.

Ps.: Vale ressaltar que o texto está transcrito em sua forma original.

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