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26 de maio de 2011

SUBVERSIVA INTIMIDADE (2) – Texto enviado por Renato Lôbo

Elisabeth Gilbert cita um autor chamado Ferdinand Mount cujo livro The Subversive Family, eu fui atrás e, nem preciso dizer, só encontrei no Sebo (“Procurando um, temos 980...”). “Não sou anarquista – escreve ela – mas me sinto bem quando vejo a minha vida em termos de uma certa resistência instintiva à conformidade”. Beleza! – eu disse: esse sou eu.


Ferdinand Mount sugere (sugere coisa nenhuma!, deixa bem claro) que todos os casamentos são atos automáticos de subversão contra a autoridade. As famílias que nascem dessas uniões voluntariosas e pessoais também são subversivas. Ele afirma que a família não só é uma organização subversiva, como é a organização subversiva suprema, a única que pode arrogar-se esse título com constância e coerência. É que só a família, em toda a História, continuou e continua a minar o poder constituído. A família é o inimigo permanente e duradouro de todas as hierarquias, igrejas e ideologias. Não só os ditadores e bispos – continua o autor – mas os humildes padres de paróquia e os intelectuais de mesa de bar acabam enfrentando repetidamente a hostilidade pétrea da família em sua determinação em resistir às interferências até o fim.


Uai?


É. É uma linguagem forte, mas Mount constrói uma argumentação cativante.


O que ele afirma é o seguinte: como os casais se unem por razões profundamente particulares, e como esses casais criam para si vidas secretas dentro dessa união, eles ameaçam pelo simples fato de existir a todos os que aspirem dominar o mundo. A primeira meta de qualquer corpo autoritário específico é impor o controle a uma população específica por meio de seus meios específicos: coação, doutrinação, intimidação, propaganda. Mas, para sua frustração – e aqui é o Gibraltar do argumento – as figuras de autoridade nunca (vejam bem, nunca!) conseguiram controlar inteiramente, sequer monitorar, as intimidades mais secretas do que acontece entre duas pessoas, entre quatro paredes, dormindo juntas, regularmente.


Sai “uai”!


A nenhuma força policial mais eficaz que o mundo totalitário possa ter construído é dado conseguir escutar todas as conversas privadas em todos os lares privados às três da madrugada. Né! Ninguém jamais conseguiu isso. (Você tem idéia do que essa coisa significa?) Não importa que a conversa de travesseiro seja modesta, trivial ou séria; essas horas silenciosas pertencem exclusivamente às duas pessoas que as dividem. O que se passa com um casal sozinho no escuro é a própria definição da palavra “privacidade”. E aqui não se trata de sexo, mas de um aspecto ainda muito mais subversivo: a intimidade. Deve ser aterrorizador pensar nisso para quem se ache investido de todo poder controlador, mas todo casal do mundo tem o potencial de se tornar, com o tempo, um pequeno país isolado de dois habitantes mais uns, criando uma cultura própria, uma linguagem própria, um código de ética próprio do qual ninguém mais pode participar.


De todas as almas criadas, escolhi uma” (Emily Dickinson). Por razões privadas apenas de cada um, o direito de cada um poder escolher e acabar escolhendo uma pessoa para amar e defender acima de todas as outras, é uma idéia transformada em situação que desde sempre exasperou familiares, amigos, instituições religiosas, dinastias imperiais, movimentos políticos, e outros. Essa seleção, esse treinamento para a intimidade, arranca os cabelos de quem queira ter qualquer controle nas mãos. Você nunca pensou por que em várias culturas, os escravos nunca tiveram permissão para se casar? Porque seria perigoso demais para os donos de escravos, sequer pensar em permitir que um cativo vivenciasse toda a gama de liberdade emocional e segredo íntimo que a união de duas pessoas pode deflagrar. Pasme quem for contra! Mas o casamento representa um tipo de liberdade interna exasperante (pasme!) e essa liberdade nunca poderia ser tolerada numa população escravizada.


É impressionante como a Sra. Gilbert deixa isso claro como água! E não deixa de ser impressionante como a cegueira do cotidiano, misturada à cegueira das instituições, conseguiu turvar essa transparência.


Mount continua. Segura a onda porque a argumentação vai ficar pesada.


No decorrer dos séculos, as entidades poderosas sempre tentaram solapar os laços humanos naturais para aumentar o seu poder. Sempre que aparece um novo culto, religião, movimento revolucionário, o jogo começa do mesmo jeito: há um esforço para separar o indivíduo das lealdades pré-existentes. É preciso um juramento de sangue de fidelidade total aos novos senhores, mestres, dogmas, “opus”, deuses, nações. “É preciso renunciar a todos os outros bens e apegos mundanos e seguir a Bandeira, a Cruz, o Crescente ou a Foice e o Martelo”. É preciso renegar a família real e jurar que, daqui pra frente, seremos a sua família. É preciso abraçar os novos arranjos pseudo-familiares impostos de fora (como o mosteiro, o kibutz, o partido, o pelotão, a gangue). Para quem preferir amar a esposa, o marido, o amante acima do coletivo, restará a imposta sensação de fracasso e traição do movimento: será condenado como reacionário, egoísta, traidor. Será excomungado.


Ainda assim, as pessoas continuam agindo dessa forma. Caramba!


Continuam a resistir ao coletivo e a escolher uma pessoa (uma!) da massa anônima para amar. Isso aconteceu nos primeiros dias do cristianismo. Os primeiros Padres da Igreja ensinaram e insistiram com força e clareza que as pessoas, dali em diante, deviam preferir o celibato ao casamento. Esse seria o novo construto social. Embora seja verdade que alguns convertidos se tornaram celibatários, a maioria decididamente não o fez. Com o tempo, os líderes cristãos tiveram de ceder e aceitar que o casamento não acabaria.


Os marxistas tomaram o mesmo rumo e tiveram o mesmo problema quando tentaram criar uma nova ordem mundial em que crianças fossem educadas em escolas comunitárias onde não haveria nenhum apego específico entre os casais. Mas os primeiros comunistas não tiveram melhor sorte dos que os primeiros cristãos. A idéia não pegou. Os fascistas também não conseguiram que pegasse. Eles influenciaram o formato, mas não conseguiram eliminar o casamento.


E nem as feministas. Algumas mais radicais alimentaram o sonho de que, se tivessem escolha, as mulheres liberadas prefeririam os laços da fraternidade e da solidariedade. Abaixo a instituição repressora do casamento! Bárbara Lipschutz chegou ao ponto de sugerir que as mulheres deixassem de “cometer” sexo, porque o sexo sempre seria um ato degradante e opressor. Aliás, alguns místicos medievais pensavam a mesma coisa. O celibato e a amizade seriam os novos modelos das relações feministas. “Ninguém precisa ser fodido” – foi o título do ensaio de Lipschutz. Não são exatamente as mesmas palavras que São Paulo usaria, mas trata-se essencialmente dos mesmos princípios: os encontros carnais são sempre aviltantes e os parceiros românticos, no mínimo, se afastam e nos afastam de um destino muito mais elevado e sublimatório.


Ta aí!


Nem as feministas, nem os fascistas, nem os comunistas, nem os primeiros cristãos tiveram sorte em suas propostas. Muitas mulheres, mulheres inteligentes e liberadas, acabaram preferindo assim mesmo parcerias privadas com homens. E pelo quê luta hoje a maioria das lésbicas, feministas e ativistas? Pelo quê, pelo quê, pelo quê? Pelo direito de se casar. Pelo direito de se tornarem mães e pais, de constituir família, de ter acesso a uniões legalmente reconhecidas. Querem estar dentro do matrimônio, configurando a sua nova história por dentro, não do lado de fora de qualquer velharia de fachada decrépita.


Não se pode impedir que as pessoas queiram o que querem. E muita gente quer só a intimidade da pessoa eleita. E como não há intimidade sem privacidade, todos tendem a reagir contra qualquer coisa que interfira no desejo simples de ficar em paz... com o ser eleito. Tentou-se muito conter esse desejo ao longo da História. Ninguém conseguiu nos forçar a abandoná-lo. Continuamos simplesmente a insistir no direito de nos ligarmos à outra alma de maneira oficial, emocional, física e material. Continuamos simplesmente a tentar, sem parar, por mais insensato que seja, recriar o ser de duas cabeças e oito membros da união humana perfeita de Aristófanes.


Ansiamos pela intimidade privada, mesmo que represente um rico emocional.


Ansiamos pela intimidade privada mesmo que a detestemos, mesmo que seja ilegal amar quem amamos, mesmo quando nos dizem que deveríamos ansiar por outra coisa, algo melhor, mais nobre. E não paramos de ansiar pela intimidade privada e, o que é pior, por razões só nossas e profundamente pessoais. Ninguém jamais conseguiu explicar esse mistério inteiramente e ninguém jamais conseguiu impedir alguém de querer.


Foi aí, então, nesse ponto, justamente aí, que os poderes constituídos re-engenharizaram a técnica e a tática.


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